É noite na frente de Kharkiv, no terceiro ano da guerra entre Ucrânia e Rússia. Um soldado ucraniano sai do seu esconderijo a coberto da escuridão e dirige-se a um veículo acabado de chegar. Rapidamente retira dele mantimentos essenciais que irão permitir à sua unidade manter a posição durante os próximos dias. Na noite seguinte, num local próximo, dois soldados ucranianos feridos em combate são evacuados num outro veículo, após vários dias de espera. Trata-se de uma missão de resgate de alto risco, visto que os soldados foram feridos bem dentro da zona de contato entre as forças opositoras[1].
Os dois episódios poderiam ser vistos como “banais” no contexto de um conflito armado, não fosse pelo facto de que, em ambos os casos, o veículo que executou a missão se tratava de um Veículo Terrestre Não Tripulado (VTNT) ou Unmanned Ground Vehicle (UGV) controlado remotamente.
A robotização da guerra
O atual conflito russo-ucraniano tem-se caracterizado pelo uso intensivo de veículos não tripulados, inicialmente aéreos (normalmente conhecidos como drones) e marítimos e, mais recentemente, terrestres. Tal resultou não tanto de uma intenção clara à priori dos beligerantes, mas das necessidades decorrentes do conflito. As forças armadas ucranianas dispunham, à partida, de muito menos recursos comparativamente às russas. Além disso, capacidades de produção limitadas e receios de escalada de conflito levaram, desde o início, os seus aliados a limitar-lhe o acesso aos seus armamentos mais sofisticados e poderosos.
Os ucranianos viram no uso de drones uma forma de contrariar estas desvantagens. Começaram por utilizá-los essencialmente para tarefas de vigilância e suporte à artilharia e forças terrestres. Rapidamente perceberam o seu potencial ofensivo, como forma relativamente “barata” de destruir unidades terrestres de custo muito superior. Os drones ucranianos podem custar até alguns milhares de euros, mas têm-se mostrado extremamente eficazes na destruição de equipamentos como tanques e peças de artilharia russa, cujo custo estimado se mede em milhões de euros.
Também no domínio marítimo, barcos não tripulados permitiram à Ucrânia, praticamente sem nenhum navio de superfície tripulado, destruir vários navios importantes da marinha russa, contribuindo para pôr fora de ação a armada do Mar Negro[2]. Mais recentemente, como os dois episódios descritos acima ilustram, o uso de robôs terrestres tem também aumentado, tanto para missões de suporte como de combate.
O uso cada vez mais frequente de drones por parte dos militares ucranianos levou a que os russos, pela sua parte, começassem também a usá-los, para contrariar a vantagem inicial ucraniana nesse domínio. Tal resultou numa escalada de parte a parte no número e sofisticação dos drones utilizados e na sua incorporação no contexto operacional. A Ucrânia tem hoje um ramo separado das forças armadas dedicado a sistemas não tripulados. Em junho deste ano, o ministro da Defesa ucraniano afirmava que o país é capaz de produzir 10 milhões de drones anualmente[3]. Acredita-se que a Rússia terá capacidades semelhantes ou superiores, destacando-se também a sua capacidade de produzir drones suicidas para ataques aéreos de longo curso.
O conflito caracteriza-se também por uma intensa corrida tecnológica, marcada pela introdução contínua de novas tecnologias no campo de batalha e por ciclos de desenvolvimento e implementação que se medem em poucas semanas. Os avanços verificam-se em vários domínios, incluindo comunicações, autonomia e plataformas integradas de comando que reforçam a coordenação entre sistemas de reconhecimento e meios ofensivos.
A utilização de sistemas de inteligência artificial (IA) é igualmente cada vez mais comum. Alguns drones de ataque ucranianos já recorrem a IA para realizar, de forma autónoma, as últimas centenas de metros de voo em direção aos seus alvos, o que lhes permite evitar contramedidas de guerra eletrónica[1]. Num episódio mediático recente, a combinação entre sistemas de IA e controlo humano possibilitou também que drones ucranianos conduzissem uma operação especial bem no interior do território russo, destruindo vários aviões bombardeiros[2].
Lições do campo de batalha
Do ponto de vista militar, a guerra entre Ucrânia e Rússia tem oferecido importantes lições e levanta significativas questões estratégicas.
Em primeiro lugar, o conflito leva a uma reflexão sobre a sapiência de investimentos avultados em equipamentos caros e difíceis de substituir. Tem sido evidente que a mobilidade e furtividade dão melhores garantias de sobrevivência do que qualquer blindagem. Plataformas grandes e pesadas, sejam elas tanques, aviões ou navios têm sido frequentemente relegadas para papéis secundários pelo seu elevado custo, que contrasta com a facilidade algo desconcertante com que são destruídas, muitas vezes por meios substancialmente mais baratos;
Em segundo lugar espera-se que os conflitos do futuro sejam cada vez mais “robotizados”, ou seja, que envolvam meios de combate e operação logística não tripulados. Se de uma maneira geral estes são, para já, maioritariamente controlados remotamente, a urgência da vantagem tecnológica faz prever uma tendência cada vez maior para os sistemas autónomos[3]. Tal levanta questões éticas significativas sobre a responsabilidade das decisões. Levanta também desafios tecnológicos ainda sem solução clara sobre como manter a responsabilidade humana em cenários complexos, em que decisões críticas são tomadas por múltiplos sistemas de inteligência artificial em curtos intervalos de tempo.
Em terceiro lugar, uma das maiores dificuldades enfrentadas pela Ucrânia desde o início do conflito é a grande dependência de fornecimento externo. Por um lado, a produção europeia e americana (os maiores aliados da Ucrânia) não foi suficiente nem conseguiu escalar rapidamente para apoiar a Ucrânia sem comprometer as próprias necessidades desses países. Por outro, por questões políticas e estratégicas, as forças ucranianas viram-se limitadas no acesso aos equipamentos mais poderosos e sofisticados dos seus aliados. E quando a eles tem acesso, estão restringidas na utilização que deles pode fazer.
Por último, o velho apanágio de que as guerras se ganham e perdem pela logística continua hoje a ser tão verdade como sempre. Confrontada com as limitações no fornecimento externo, a Ucrânia foi capaz de desenvolver muito rapidamente uma enorme capacidade própria de produção de armamento, particularmente de drones. Está hoje na vanguarda tecnológica destes dispositivos. A Rússia por seu turno desenvolveu também substancialmente a sua cadeia logística visando a produção massiva de drones, além de outros armamentos. Ambos incorporam novos avanços tecnológicos em ciclos de desenvolvimento rápidos, medidos não em anos ou meses, mas em semanas.
A urgência da inovação e soberania
As forças armadas europeias, incluindo as portuguesas, estão na missão de reconstruir uma capacidade operacional descurada durante muitos anos. Para tal terão de prever de que forma evoluirão os cenários de conflito e nesse sentido a guerra na Ucrânia oferece importantes lições. Uma das mais importantes é que os sistemas robóticos e a inteligência artificial ocuparão um lugar cada vez mais central no campo de batalha. São plataformas menos dispendiosas e por isso mais fáceis de produzir em grande quantidade e mais sacrificáveis, comparativamente a aviões, navios ou tanques de guerra. No entanto, podem ter um impacto estratégico elevado, sobretudo se usadas de forma integrada com outros meios mais convencionais. É necessário que as forças armadas preparem esse futuro com urgência, investindo em recursos técnicos e humanos e desenvolvendo as estratégias que permitam tirar o melhor partido deste novo paradigma operacional.
Em cenários de conflito de alta intensidade, torna-se igualmente crucial assegurar a disponibilidade de meios, evitando dependências estratégicas e gargalos de produção. Isso implica que os processos de seleção e desenvolvimento das plataformas robóticas considerem a complexidade, resiliência e escalabilidade das cadeias logísticas, ou seja, a capacidade destas de tolerarem disrupções e responderem rapidamente a aumentos das necessidades. Tal deverá passar por uma aposta na produção de proximidade que permita aos países desenvolver e manter uma base logística e conhecimento critico, assegurando, tanto quanto possível, independência e resiliência. Será também essencial criar processos eficazes de comunicação entre as forças armadas e o complexo industrial. Estes deverão garantir que as necessidades operacionais chegam rapidamente a quem desenvolve os meios, facilitando os ciclos de inovação e operacionalização com impacto estratégico.
O mundo parece regressar a uma era que julgávamos ultrapassada: uma época de rivalidade e fragmentação, onde a força é usada como expediente e não como último recurso. Para países como Portugal e a Europa em geral, este cenário é preocupante. Mas a guerra na Ucrânia mostra que a superioridade não depende apenas da quantidade de recursos, mas da capacidade de inovar e adaptar-se. Os sistemas robóticos está a redefinir as regras do combate, colocando desafios não apenas tecnológicos, mas também organizacionais e estratégicos. É imperativo antecipar, adaptar e inovar antes que o próximo conflito torne obsoletas as doutrinas atuais. A paz – ou pelo menos a ausência de conflito – poderão depender disso.
1) https://cepa.org/article/mechanical-medics-transform-ukraines-frontline/
2) https://www.bbc.com/news/world-europe-68292602
3) https://mod.gov.ua/en/news/the-ukrainian-defense-industry-has-the-capability-to-produce-10-million-drones-annually-said-oleksandr-kozenko-at-a-security-forum-in-singapore
4) https://www.bbc.com/news/articles/cly7jrez2jno
5) https://www.politico.eu/article/ukraine-releases-new-footage-ai-strikes-drone-russia-putin-bomber-fleet-spiderweb/
6) https://www.economist.com/europe/2024/12/02/how-ukraine-uses-cheap-ai-guided-drones-to-deadly-effect-against-russia