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A Inteligência Artificial para além dos “ChatGPTs”
26 Novembro, 2024

Hoje em dia, a Inteligência Artificial (IA) é um tema quente, com destaque quase diário em grande parte dos media (ex.: jornais, rádio, televisão, redes sociais, entre outros). Em particular, o próprio Parlamento Europeu tem realçado a importância desta temática, como demonstra a publicação do primeiro regulamento de sempre sobre o uso de IA[1].

Este interesse generalizado pelo tópico foi impulsionado pelo lançamento e disponibilização gratuita do ChatGPT (e similares – Llama, Gemini, entre outros), que, indiscutivelmente, revolucionaram esta área. Contudo, e não descredibilizando a sua relevância, a IA é mais do que ferramentas generativas (i.e., focadas na criação de conteúdo, como texto ou imagens) e chatbots (i.e., programas de computador que simulam conversas). Na verdade, a grande maioria das organizações não possuem as informações (dados) e o poder de computação necessários para o desenvolvimento destas soluções, nem tão pouco possuem a necessidade para tal. Posto isto, este artigo debruça-se sobre as abordagens e ferramentas de IA que se podem adequar à realidade da maioria das empresas e organizações, com especial foco no suporte à tomada de decisão.

Mas o que é a tomada de decisão? A tomada de decisão é um processo cognitivo que consiste na avaliação de alternativas e culmina na seleção de uma ação, tendo por base a análise da informação disponível, a estimativa de probabilidades e a (tentativa de) antecipação de resultados. Este processo envolve fazer escolhas, que podem ser influenciadas por diversos fatores, dependendo do problema, e pode ser auxiliado e melhorado utilizando sistemas de apoio à decisão baseado em dados[2].

O processo de decisão aplica-se a problemas tão simples como “devo levar um guarda-chuva hoje?”, ou tão complexos como “como devo alocar os recursos disponíveis para mitigar o impacto dos incêndios?”. Independentemente da complexidade do problema, as ferramentas de IA aqui destacadas têm potencial para auxiliar na escolha.

Mas antes, um pouco de história.

O termo “Inteligência Artificial” não é recente. A sua origem remete para a década de 1950, durante um workshop que ocorreu em Dartmouth, fruto de trabalhos de investigação propostos por Alan Turing, John McCarthy, entre outros investigadores. O termo abrange qualquer abordagem computacional que permita demonstrar formas de inteligência, tais como a compreensão, o raciocínio ou a aprendizagem. No final da mesma década, Alan Samuel propôs o termo “Aprendizagem Computacional” (do inglês “Machine Learning”), um subcampo da IA que estuda o desenvolvimento de programas (ou algoritmos) capazes de realizarem tarefas sem serem explicitamente programados para tal.

Ao longo dos anos, foram propostos vários algoritmos de aprendizagem computacional. Entre os mais populares estão as Redes Neuronais, as Árvores de Decisão e o Random Forest. Quando estes algoritmos interagem com conjuntos de dados (informações recolhidas ao longo do tempo), são capazes de extrair padrões complexos e conhecimento útil, que, em muitos casos, não é identificável pelo humano. Este processo é usualmente conhecido com Mineração de Dados (do inglês Data Mining).

Através dos padrões identificados por estes algoritmos, é possível antecipar eventos ou prever valores futuros. Com estas informações, o processo de tomada de decisão é facilitado e, em alguns casos, até automatizado. Exemplos da sua aplicação incluem os sistemas de previsões meteorológicas e os mecanismos de deteção de transações fraudulentas nos sistemas informáticos dos bancos. Deve notar-se que, neste último exemplo, nenhum destes sistemas é programado explicitamente para saber o que é uma fraude. Ao invés, é programado para aprender a distinguir entre uma transação fraudulenta e uma normal, tendo por base um histórico de dados sobre transações.

Mais recentemente, foram propostos o Deep Learning e os famosos Large Languge Models (LLMs) – usados pelos ChatGPTs –, ambos resultados de evoluções sofisticadas e superpoderosas das redes neuronais. As suas aplicações são diversas, desde o reconhecimento de objetos em imagens até à sumarização e geração de textos de elevada qualidade. Apesar da sua popularidade, os LLMs não são os algoritmos pioneiros na geração de conteúdos como imagens e textos – aptidão pertencente ao campo da IA Generativa. Contudo, são indubitavelmente um marco na investigação e na revolução desta área.
 

E agora, qual a realidade das empresas?
 

Atualmente, recolher e armazenar digitalmente informação é cada vez mais simples e barato, e muitas organizações já mantêm um histórico sobre as operações e processos que realizam. Estas informações (dados) podem ser sobre o número de vendas, leituras de sensores de máquinas no chão-de-fábrica, testes de qualidade dos produtos, avaliações de clientes, entre outros.

 Manter este registo é importante para se perceber o que acontece dentro das organizações e o que nestas pode ser melhorado, de forma a potenciar a sua digitalização e aumentar a competitividade. Para tal, as ferramentas de IA podem desempenhar um papel crucial e diferenciador. Contudo, estarão as empresas, na sua maioria, preparadas para este passo?

Ora bem, recolher dados sem um propósito bem definido pode resultar no desperdício de recursos. Sendo os dados a base dos algoritmos de IA, a falta de qualidade destes poderá resultar em informações pouco precisas ou enviesadas e, em última instância, num sistema de apoio à tomada decisão desadequado e inútil. Pode ler-se mais sobre a importância da quantidade e qualidade dos dados aqui. Ainda assim, no que à análise de dados diz respeito, muitas das organizações podem tirar proveito das ferramentas de IA, ainda que com diversas limitações. Frequentemente, o papel do especialista passa por gerir as expectativas e determinar metas e objetivos tangíveis a atingíveis.

Se houver coerência nos dados recolhidos relativamente a uma operação (ex.: testes de qualidade de um produto) e aos fatores que a influenciam (ex.: o processo de produção), pode ser possível extrair insights valiosos sobre a mesma e até antecipar ocorrências futuras e automatizar essa operação.

Não é possível, contudo, obter os mesmos insights sobre algo diferente, que não esteja representado nesses dados (ex.: outro produto) ou sobre um evento que é aleatório (ex.: a chave do Euromilhões). O desempenho dos algoritmos de IA tem uma forte dependência da qualidade e quantidade dos dados utilizados na sua criação.

Quando os algoritmos em causa são LLMs ou outros mecanismos de chatbot, estes problemas ganham maior relevância. Além do volume e qualidade de dados necessários ser consideravelmente superior, os recursos computacionais também o são. Nestes casos, a maioria das empresas não possui estes dados, nem tem capacidade financeira de adquirir os supercomputadores que os LLMs requerem. Ainda assim, não significa que as soluções baseadas em Inteligência Artificial estejam fora do seu alcance.

 

Quais as aplicações da IA nas organizações?

Existem 4 principais tipos de análise de dados, com diferentes graus de complexidade e consequentes níveis de valor acrescentado para as organizações (ver Figura 1). A título de exemplo explicativo, será utilizado um projeto anterior na área da manufatura aqui descrito.

 

 

  • Análise descritiva – recorre a dados históricos (do passado) para descrever as atividades ou eventos a que se referem. Este tipo de análise permite a identificação de problemas e incoerências nos dados e no seu processo de recolha. No projeto supramencionado, permitiu perceber quais os materiais produzidos, a cadência, o ambiente no chão-de-fábrica e a quantidade de defeitos ou anomalias durante a produção.
  • Análise diagnóstica – também recorre a dados históricos, mas tem como propósito identificar os fatores que influenciam determinado evento. Este tipo de análise permite identificar a falta de relação entre os dados existentes e o acontecimento em análise. Enquadrando com o exemplo anterior, permitiu perceber que fatores influenciavam a produção e qual a sua relação com o evento em análise: a ocorrência de defeitos.
  • Análise preditiva – recorre a ferramentas de IA, em particular algoritmos de aprendizagem computacional, para extrair padrões complexos e prever ocorrências futuras, permitindo mapear um conjunto de fatores para o resultado expectável. No projeto usado para exemplo, foi utilizada para prever futuras ocorrências de defeitos e de anomalias na produção, com base em determinados fatores no chão-de-fábrica.
  • Análise prescritiva – é o tipo de análise de dados mais complexo, mas com maior valor acrescentado para a organização. Recorre aos resultados das análises anteriores e a mecanismos de otimização para recomendar ações a aplicar no presente, que permitam otimizar um (ou mais) objetivo(s) da organização no futuro. Voltando ao exemplo anterior, este tipo de análise foi usado para obter “receitas” de produção que minimizassem o número de defeitos e de anomalias. Estas receitas continham valores ideais para os fatores que influenciam o evento em análise (ex.: temperatura das máquinas).

Usando a recente problemática dos incêndios como um exemplo complementar, os primeiros dois tipos de análise permitiriam identificar a sua ocorrência no passado (ou até em tempo-real) e eventuais fatores que os originaram, possibilitando uma atitude reativa ao seu acontecimento.

Por outro lado, os dois últimos tipos de análise de dados potenciam a deteção antecipada da sua ocorrência e até recomendação de ações que minimizem o seu acontecimento, ou mitiguem o seu impacto, potenciando atitudes proativas. As ferramentas de IA, particularmente os algoritmos preditivos de aprendizagem computacional e os algoritmos de Otimização Moderna, desempenham um papel crucial no suporte às atitudes proativas. Os primeiros, pela sua capacidade preditiva, potenciariam a deteção antecipada dos incêndios, permitindo, por exemplo, estimar os recursos necessários para um dia. Os segundos, por sua vez, poderiam permitir, através da sua capacidade de otimizar métricas, reduzir a área ardida por um incêndio, através da recomendação de ações a realizar antes do seu acontecimento (ex.: aumentar largura da área de limpeza florestal).

Obviamente, o problema dos incêndios é complexo, pelo que a sua antecipação e/ou mitigação podem ser bem mais difíceis do que aqui descrito. Note-se, contudo, que o propósito do exemplo é apresentar as vantagens da IA no apoio à tomada de decisão.

Não me compete a mim, nem é esse o propósito deste artigo, decidir se as empresas devem ou não investir “neste” ou “naquele” tipo de abordagem de IA para integrarem nas suas soluções. Ao invés, pretendo alertar para a existência de soluções alternativas e, em alguns casos, mais adequadas.

 

[1] https://www.europarl.europa.eu/topics/en/article/20230601STO93804/eu-ai-act-first-regulation-on-artificial-intelligence

[2] https://www.sciencedirect.com/topics/social-sciences/decision-making

 

Por:  Pedro Pereira

Investigador Sénior em Machine Learning, no Departamento EPMQ do CCG/ZGDV Institute