Desde tempos remotos, os nossos ancestrais Homo sapiens sentiram a necessidade de criar ferramentas e moldar pedras para garantir a sua sobrevivência. Ao longo da história, a tecnologia tem sido impulsionada pelo desejo de melhorar a qualidade de vida e gerar progresso. No entanto, esta relação entre humanos e máquinas será realmente benéfica para o nosso bem-estar ou estará a conduzir-nos a uma perigosa apatia?
Marx argumenta que, sob o capitalismo, as capacidades produtivas do trabalho manifestam-se como a força produtiva do capital. Neste sistema, a "força de trabalho em ação" é incorporada como um elemento fundamental do capital e opera como capital de trabalho (Marx, 1867). Contudo, a natureza do trabalho está a mudar rapidamente com o advento da revolução da Indústria 4.0 (Vogel-Heuser & Hess, 2016). As máquinas, ao assumirem o papel humano na produção, despertam muitas questões sobre como lidar com este tema. Mesmo com a proposta da Indústria 5.0 (European Commission et al., 2021) para atualizar o papel do humano no trabalho, o principal facto é que estamos a lidar com um momento disruptivo na história humana, onde podemos alterar a natureza do trabalho, sobretudo com o advento da Inteligência Artificial (IA). Tornar-se-á o ócio uma profissão, agora que o trabalho poderá deixar de pertencer aos humanos, ou procuraremos novos caminhos para aplicar o nosso potencial?
A relação entre humanos e tecnologia remonta aos primórdios da nossa existência, começando pela tentativa de compreender e controlar os fenómenos naturais até ao momento em que começámos a criar ferramentas e construir estruturas. Ao longo do tempo, registaram-se avanços marcantes, com os intervalos entre esses momentos decisivos a tornarem-se cada vez mais curtos. A imagem de Gregersen ilustra uma perspetiva histórica de alguns dos grandes marcos da humanidade.
Desde que Alan Turing, em 1950, questionou quais seriam as condições para considerar uma máquina inteligente, a área da IA tem registado avanços notáveis (Turing, 1950). O termo "Inteligência Artificial" foi introduzido em 1956 por McCarthy et al. (2006), marcando o início de uma nova era tecnológica. Atualmente, a integração da IA como sistema orientador revela um potencial extraordinário para otimizar e transformar diversas atividades humanas.
Estamos numa fase em que existe suporte tecnológico para popularizar a interação entre humanos e máquinas. O rumo dependerá da abordagem que os humanos adotarem perante este desafio. Se optarem por uma postura ética, utilizando estas ferramentas como um fator diferenciador positivo, acreditamos que será possível encontrar um equilíbrio.
No entanto, é importante recordar que não estamos a lidar com entidades dotadas de moral ou crenças religiosas. As máquinas executam, pelo menos por agora, apenas aquilo que lhes foi programado, independentemente das consequências, sejam elas positivas ou negativas. Até ao momento, não existem mecanismos no mundo digital que tentem replicar um conceito análogo ao que Moisés foi compelido a estabelecer durante o Êxodo – os Dez Mandamentos – que serviram para criar um pacto social, regular a convivência e garantir alguma harmonia dentro da comunidade.
As "Três Leis da Robótica" podem ser um bom ponto de partida:
1 - Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2 - Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.
3 - Um robô deve proteger a sua própria existência, desde que essa proteção não entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Lei.
(Asimov, 1950)
Num tempo em que o receio da iminente singularidade tecnológica se instala, Asimov continua a oferecer-nos uma tábua de salvação com a introdução da Lei Zero: Um robô não pode causar dano à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal. (Asimov, 1985). Esta lei foi concebida para que robôs dotados de inteligência avançada pudessem tomar decisões que priorizassem o bem-estar da humanidade como um todo, mesmo que isso entrasse em conflito com a segurança de indivíduos específicos. No entanto, essa ideia levantou complexos dilemas éticos e paradoxos dentro do universo ficcional de Asimov, pois um robô que siga a Lei Zero pode, por exemplo, justificar o sacrifício de um pequeno grupo se isso significar salvar uma quantidade maior de pessoas ou garantir o bem-estar coletivo a longo prazo.
Existem iniciativas regulatórias, como a “IEEE Global Initiative on Ethics of Autonomous and Intelligent Systems”, cujo objetivo é garantir que todos os intervenientes envolvidos no design e desenvolvimento de sistemas autónomos e inteligentes sejam educados, treinados e capacitados para priorizar considerações éticas, de modo a que estas tecnologias avancem para o benefício da humanidade (Chatila & Havens, 2019). Contudo, é bom ter em consideração que demasiada proteção pode prejudicar a inovação, tal como se tem questionado com a introdução do nosso EU AI Act (European Union, 2024).
Em suma, a relação entre humanos e máquinas é um tema complexo e multifacetado. As perspetivas sobre esta relação podem variar significativamente, dependendo de vários fatores, como experiências pessoais, contextos culturais e crenças individuais. É na forma como interagimos com as máquinas, na compreensão das suas capacidades e nas normas sociais que orientam o seu uso que se define a natureza desta ligação, sempre com o potencial de promover o bem-estar humano.
No entanto, à medida que a tecnologia avança, assistimos a fenómenos inesperados – desde matrimónios simbólicos entre humanos e entidades digitais, até à crescente automatização que ameaça redefinir por completo o nosso papel no mundo do trabalho, arriscando-nos a não ter nada que fazer profissionalmente. Estaremos preparados para estas mudanças?
Artigo de opinião por:
Alexandre Carrança, Researcher in Computer Vision, Interaction and Graphics (CVIG)
Referências:
Asimov, I. (1950). I, Robot. Gnome Press.
Asimov, I. (1985). Robots and Empire. Doubleday Books.
Chatila, R., & Havens, J. C. (2019). The IEEE Global Initiative on Ethics of Autonomous and Intelligent Systems (pp. 11–16). https://doi.org/10.1007/978-3-030-12524-0_2
European Commission, Directorate-General for Research and Innovation, Breque, M., De Nul, L., & Petridis, A. (2021). Industry 5.0: Towards a sustainable, human-centric and resilient European industry. Publications Office of the European Union. https://doi.org/10.2777/308407
European Union. (2024). Artificial Intelligence Act. Official Journal.
Gregersen, E. (2023). History of Technology Timeline. Encyclopedia Britannica. https://www.britannica.com/story/history-of-technology-timeline
Marx, K. (1867). Capital: A Critique of Political Economy. Volume I: The Process of Capitalist Production. Charles H. Kerr and Company.
McCarthy, J., Minsky, M. L., Rochester, N., & Shannon, C. E. (2006). A Proposal for the Dartmouth Summer Research Project on Artificial Intelligence, August 31, 1955. AI Magazine, 27(4), 12. https://doi.org/10.1609/aimag.v27i4.1904
Turing, A. M. (1950). Computing Machinery and Intelligence. Mind, 59(236), 433–460. http://www.jstor.org/stable/2251299
Vogel-Heuser, B., & Hess, D. (2016). Guest editorial Industry 4.0–prerequisites and visions. IEEE Transactions on Automation Science and Engineering, 13(2), 411–413.